terça-feira, 27 de outubro de 2009

A porta-voz dos esquecidos

“Eu senti que era meu dever voltar...Lá, pensei, eu posso fazer a diferença.” Essa é a resposta de Asne Seierstad sobre sua segunda viagem à Tchetchênia, em plena guerra civil. É esse o espírito da jornalista norueguesa de 39 anos, aclamada pela imprensa de seu país como a escritora de maior venda de ficção da história da Noruega. Asne escreveu quatro livros que lhe renderam vários e importantes prêmios, como o Free Speech Award, em 2002, e o Grande Prêmio Norueguês de Jornalismo no ano seguinte.

O Livreiro de Cabul é a sua obra prima. É o registro de três meses hospedada na casa de uma família afegã, liderada por Sha Mohammed Rais. Tudo que ela tinha eram seus olhos atentos e um bloco de anotações. Foram mais de três milhões de cópias vendidas e um processo na justiça. Rais acusou Asne de denegrir a sua imagem, de sua família e de seu país. A resposta da escritora foi categórica: “Ele devia ter se controlado se não queria que eu descrevesse o modo autoritário como tratava as mulheres e os filhos. Não ouvi conversas secretas atrás das portas. Relatei cenas que presenciei e diálogos traduzidos para mim por Rais e seus parentes. Ele achava que eu escreveria um conto de fadas no qual seria o herói. Em vez disso, eu o descrevi como um pai afegão típico, e ele não gostou“, declarou em entrevista a Rui Castro, da Veja, em 2006.

Passada a sua aventura afegã, Seierstad foi ao Iraque. 101 dias em Bagdá é o resultado do tempo que Asne passou na capital do país. Antes, durante e depois da queda de Saddam Hussein, em meio a ameaças de ataques, há o relato de uma jornalista sobre as experiências do povo iraquiano. Apesar de todo o conflito político, ela se mostra delicada sobre o assunto no livro, mas é possível ver o impacto dessa problemática no dia-a-dia iraquiano.

Depois do Afeganistão e Iraque, chegou a vez da Sérvia. Em De costas para o mundo há um relato único do cotidiano do país, devastado pela guerra e suas conseqüências. Seierstad narra de maneira emocionante o ser humano marcado por um dos mais sangrentos conflitos da história da humanidade, a guerra da Bósnia que, em 1990, devastou e desmembrou a Iugoslávia.

Três livros, três culturas, três sociedades, o mesmo povo, vítima e sofredor. Seria o suficiente para qualquer escritor, metido a jornalista investigativo, correspondente de guerra. Mas não para Asne Seierstad.

Crianças de Grozni. Esse é o título da mais recente obra da norueguesa faminta por histórias humanas. Com o subtítulo de Um retrato dos órfãos da Tchetchênia, Asne volta a um cenário que conhece muito bem: aquele que é devastado pela guerra e deixa pra trás muitas histórias. Pela segunda vez ali, ela retorna para contar o que as crianças que tiveram suas vidas mudadas pela intolerância humana tem a dizer.

Na primeira vez que esteve lá, ela tinha 24 anos, era uma correspondente imparcial da guerra. Agora, voltava, em 2006, ilegalmente e para ser a porta-voz do futuro da Tchetchênia. Dias escondida e vivendo como uma mulher local, passando os perigos reais do momento, Asne buscou a história das crianças de um orfanato e de outras famílias devastadas pelo conflito civil.

Uma jornalista observadora apaixonada pela busca da notícia, que não se deixar envolver pelas histórias que conta em suas páginas, ou pelo menos, que guarda muito bem esse envolvimento. Depois de Crianças de Grozni, Asne aquietou. Após conhecer o futuro tchetcheno naquele orfanato, ela está em Oslo, na capital de seu país, cuidando do seu futuro, seu filho. A própria escritora sabia o quanto seria difícil um dia se afastar, mesmo que um pouco, da vida jornalística: “É uma escolha de vida. Minha vida é na estrada e foge dos padrões de uma família tradicional. Talvez um dia eu me acalme. Depende do meu parceiro. Ele é músico e mora no Cairo. Eu penso, sim, em ter filhos e ter uma família. Só não sei quando”, contou a Kátia Mello, da revista Época.

Um dos resultados de 101 dias em Bagdá foi uma escola só para meninas que Asne mantém em Cabul, mas nunca foi até lá. “Eu tenho um pouco de medo de ir a Cabul. Recebo relatórios e fotos, e sei que hoje já são cerca de 600 meninas que também levam seus irmãozinhos para estudar. Não quis também ir até lá como uma Madre Teresa para falar sobre o que estou fazendo por elas”, confessa. Essa é Asne Seierstad, pronta para cumprir seu papel de jornalista, mas sem aparecer, observando e relatando o mundo ao seu redor.

(Perfil feito para a disciplina Jornalismo Cultural)